MULHERES DE UTOPIAS – Show-Manifesto, por Alexandre Mate

Foto: Gaia Maria

Mulheres de Utopias: Show-Manifesto (2025)

A cidade de São Paulo, já chamada a “terra da garoa”, “a cidade dos rios”, “pauliceia desvairada” se caracteriza em um dos mais potentes territórios de criação teatral do planeta. Inventividade, potência criativa ao paroxismo, criação de cenas inusitadas e às vezes inimagináveis têm sido apresentadas por mais de trezentos coletivos teatrais a enfrentar todas as dificuldades para existir, manter interlocução e inserir-se em uma arena de disputas contra todos os tipos de barbáries na capital paulistana. Assim, e por intermédio de um senso crítico bastante desenvolvido e realista, penso – e estou bastante convencido disso – aos epítetos anteriores poder-se-ia usar um outro, não novo, é verdade, mas bastante condizente com o quadro atual de produções teatrais, do sujeito histórico teatro de grupo, São Paulo poderia ser apresentada como “um território de antológicas e surpreendentes criações teatrais”.

Pode parecer um exagero facilitatório, mas, na verdade, na hora de sair de casa para assistir a um espetáculo, vive-se um embate com múltiplos (e “bons contendores”): no imenso conjunto de obras, o que escolher? Sabe-se que algo será assistido, mas, e do mesmo modo, há discernimento de que muitas outras obras serão “perdidas”. Há na cidade, obras espetaculares a serem assistidas todos os dias, criadas por meio de diversos tratamentos estéticos e configuradas a partir de múltiplos recortes e vozes conexas e dissonantes…

No domingo, 13 de abril de 2025, escolhi (em razão também de ter sido convidado), ir assistir ao Mulheres de Utopias: Show-Manifesto. Minha ida se deveu ao fato de no espetáculo estarem Ana Maria Quintal e Egla Monteiro. Conheço Ana Maria Quintal a muitas décadas, atriz maravilhosa e guerreira aguerrida (daquelas que Brecht nomeou como “gente que luta toda uma vida”, ou seja: um ser imprescindível!); Egla Monteiro, uma eterna militante (e não apenas de discursos) tem uma trajetória notável e absolutamente digna de reconhecimento. De todos os feitos de Egla Monteiro e seu companheiro Marcelo Massucci (que formam um casal admirável), em 2017, criaram o acolhedor e impecável Teatro de Utopias . Espaço que fica na rua Duílio, 46, no bairro chamado Vila Romana, e em cujo território, nas proximidades, encontram-se o Sesc Pompeia e a sede da histórica União Fraterna, que promoveu tantos bailes e tantos encontros de discussão política.

Ao entrar no teatro, cujo espaço representacional, arquitetonicamente se insere em proposição frontal, topa-se com cinco mulheres cujos rostos “escondem-se” atrás de desenvolvidas folhas de árvores (da espécie africana fícus lyrata). Por meio de tal recurso, inicia-se o processo de traduzibilidade de metáforas… As folhas não opacizam ou impedem a visão, ao contrário, descortinam possibilidades: cinco mulheres lyratas! Cecília Meireles escreveu o lindíssimo poema Retrato, em cujo verso final aparece: “Em que espelho ficou perdida a minha face?”. Nas roupas de cores quentes, em meio a verdejamentos acolhedores, uma tela de projeção, que “ostenta” uma verdejante paisagem (e outras lindíssimas imagens durante todo o espetáculo, como a inserir gente, bicho e planta em harmonia), em composição com localizados nichos, dispostos de modo equilibrado, repletos de pequenos vasos com plantas vivas: antúrios e outras espécies.

“Há flores e cores concentradas/ Ondas queimam rocha com seu sal…”, escreveu Caetano. Aquele se caracterizava em um planeta que eu queria estar, que escolhi estar, em meio àquela onda absolutamente feminina: a cena, a ficha técnica e o público fundamentalmente feminino! Naquela profusão de imagens, a primeira intervenção foi de Davi Kopenawa, cujo texto passa pela alusão de as árvores e as florestas serem femininas, se louvava e pedia proteção dos xamãs…

Saudando as gentes (próximas e ancestrais), o espaço representacional se transforma em um terreiro, no qual – e proposição híbrida – giras serão manifestas. Mulheres que falam de si, de suas ancestrais, de seus ídolos… e a mesclar canto, musicalidades experimentadas por meio de distintos instrumentos e músicas ma ra vi lho sas… Cátia de França (que saudade e que bom ouvi-la por Érika Malavazzi); que momento lindo a cantoria a nós apresentada por Cesária Évora, ressignificada pela delicadeza-firme de Eliane Liberato. A partir de momento tão lindo, confesso, fui capturado. Após isso, Egla Monteiro apresenta o relato do bárbaro assassinato da líder sindical de trabalhadores e trabalhadoras da terra, Margarida Maria Alves. Tudo o que se segue a partir daí, é a mais “pura covardia”: como homem, acolhido naquele terreiro, me rendi ziguezagueantemente em emoção, me deixei levar (não era mais eu a me navegar…)

Sem despregar os pés do chão, aterrado cada vez mais naquele local de beleza, de louvação e de protesto, deixei lufadas de vento forte, como escreveu o amado Zé Celso, então na condição de pipa me fazer ir, ao encontro de quem alimentou, em distintos momentos minha vida e a de meus/ minhas ancestrais: Chico Buarque de Hollanda, Jorge Benjor, Cecília Meireles (cujo poema conheci cantado por Fagner, quando ele ainda era decente…), Tulipa Ruiz, Violeta Parra, Fernando Pessoa (em um de seus desassossegados estados de gravidez….), Ary Barroso, Belchior! (duas – mas sempre necessárias – vezes!), o poema da “eslava” Wislawa Szymborska (que até pode ser branca na poesia, mas é negra demais no coração…), Rita Lee, nos conclamando a sair do sério!, a encantante (ao paroxismo) Nenê Cintra!, dona Ivone Lara, de novo Nenê Cintra com Jonathan Silva e tanta gente mais…

Emoção cortada com foice e facão (“mas ando mesmo descontente, desperadamente eu grito em português)… A obra é arrebatadora, comovente, poética, forte, incisiva. Quanto ao tempo cronológico, não faço ideia, mas quanto ao tempo kairós… coisa de eternidade.

Como um reparo, que chegou a me “incomodar” em determinados momentos, é preciso que a obra seja orientada do ponto de vista da expressão do corpo em consonância à força do canto, das palavras e da musicalidade da obra. Um corpo orgânico, naquele estado, tem de ter outro processo de manifestação. Portanto, penso que a obra deva continuar, mas revisitando sobretudo tal aspecto.

Fecundado e estremecido por belezas, sai cantando o poema Canção Amiga, de Carlos Drummond de Andrade, acredito, musicalizado por Milton Nascimento:

Eu preparo uma canção
Em que minha mãe se reconheça
Todas as mães se reconheçam
E que fale como dois olhos
Caminho por uma rua
Que passa em muitos países
Se não me vêem, eu vejo
E saúdo velhos amigos
[…]
Eu preparo uma canção
Que faça acordar os homens
E adormecer as crianças

O espetáculo teve a seguinte ficha técnica: criação coletiva, direção geral e atuação de: Ana Maria Quintal, Egla Monteiro, Eliane Liberato, Érika Malavazzi e Nenê Cintra; direção musical: Nenê Cintra; interlocução para direção cênica: Camila Andrade; interlocução para figurino e cenografia: Tereza Monteiro; interlocução para ambiência cênica: Alícia Peres; orientação para confecção de estandartes: Silvana Marcondes; operação de som: Vivi Barbosa; registro fotográfico: Gaia Maria, João Sampaio; iluminação: Camila Andrade, Egla Monteiro, Marcelo Massucci, Alexandre Garcia; operação de luz e projeção: Alexandre Garcia; coordenação geral de produção: Egla Monteiro; equipe Utopias: Egla Monteiro, Marcelo Massucci, Alexandre Garcia; realização e produção: Casa Teatro de Utopias / Teatro de Utopias.

Alexandre Mate – Mestre em Teatro pela ECA/USP e Doutor em História Social pela FFLCH/USP. Autor de vários livros, artigos, ensaios, críticas teatrais, pesquisador e militante da área teatral.

 

compartilhe...
Share on Facebook
Facebook
Tweet about this on Twitter
Twitter
Email this to someone
email

Author: Casa Teatro de Utopias

Casa Teatro de Utopias junta-se aos outros pequenos teatros e espaços de cultura espalhados por São Paulo – espaços luminosos, amorosos e de respiro vital para a cidade – nos quais corações batem forte em luta por vida digna, justa, plena e feliz.

Leave a Reply